sexta-feira, 9 de maio de 2008

Razões que a razão desconhece II

Após conduzir durante aquilo que me pareceu uma eternidade, os meus olhos ardem inescrupulosamente. Lanço um olhar para o espelho desfeito em cacos, as minhas dezenas de reflexos mostram-me um ar abatido, desconsolado. Os meus olhos, vermelhos, inchados, como dois seios de uma mãe que não produziu leite suficiente para o seu filho insaciável estão incapazes de lacrimejar uma gota mais. No rádio uma voz feminina canta:

Woooohh
Do you believe
In what you see
There doesn't seem to be anybody else who agrees with me
Do you believeIn what you see
Motionless wheel
Nothing is real
Wasting my time
In the waiting line
Do you believe inWhat you see
Desperta-me da inércia em que me encontrava, curioso como certas músicas captam bem o estado de espírito em que nos encontramos. Sinto-me como se o tempo tivesse parado, como se a realidade que vejo fosse apenas fruto da minha imaginação... mas não, a dor que me aperta o coração é demasiado forte, como se me deslocasse num jacto em manobras contra-natura experimentando forças G para além do que é humanamente possível de aguentar. O meu peito parece ceder perante tamanha pressão, sinto dificuldade em respirar, coloco a minha mão sobre o peito enquanto arquejo, o meu coração dispara para mil à hora. Aproximo-me da berma para poder descansar e é quando percebo que estou junto a uma estação de serviço. Saio a custo do carro, desloco-me sobre aquilo que parecem ser dois caules de trigo ressequido após a colheita, sinto que a mais leve brisa me pode derrubar. Peço um café à jovem adolescente borbulhenta que se encontra de serviço enquanto me sento para descansar. O local é pobremente iluminado e a decoração parece saida de um filme dos anos 70, sobre o velho Oeste. A jovem agarrou numa pequena chaleira e refugiou-se na cozinha, nem uma máquina expresso têm! Ahh como é bom reparar novamente nas trivialidades, dou por mim muito mais relaxada, o batimento cardíaco parece ter regularizado e o peso que me sufocava o peito parece ter desaparecido. Esboço um sorriso tímido por mostrar finalmente sinais de retoma quando reparo nele! O seu rosto meu encoberto por uma sombra deixa antever uma crueldade, uma desfiguração que nenhuma acção humana, física poderia ter provocado. Ele olha para mim fixamente, uma sensação gelada percorre-me desde o interior e sinto as minhas pernas novamente como varas verdes. Refugio-me na casa de banho, molho a cara com água fria e procuro com uma ténue esperança encontrar uma réstia de confiança, auto-segurança, aquela personalidade decidida que sempre me caracterizou, mas o meu reflexo transmite-me exactamente o oposto. Como pude ter caído neste abismo, do qual não encontro salvação?! Passo as mãos novamente pelo rosto, inspiro profundamente e penso numa vontade irresistivel de fumar. Isso, um cigarro serve para me acalmar. Abro os olhos e vejo novamente um rosto, desta feita foi o rosto que deixei poucas horas antes naquela praia deserta, mas não como me recordava dele. O seu olhar inexpressivo, contrasta com a sua expressão facial de desespero, medo e assombração. Gotas vermelhas caiem do seu pescoço decepado. Sinto os meus músculos endurecerem como nunca senti, não respondem a qualquer ordem que lhes dê, nem sei bem se o meu próprio cérebro responde à minha vontade de dar ordens. Pareço estar sobre um feitiço congelante, vejo tudo o que se passa, sei o que vai acontecer, quero reagir mas nada acontece. Por detrás está novamente aquele olhar frio, selvaticamente aterrorizador, agora à luz fluorescente das lampadas da casa de banho reconheço-o, embora esteja diferente, desfigurado daquilo que me lembrava. Não é deste rosto que me lembro quando trocámos votos, no entanto agora apresenta uma transfiguração empunhando uma faca e nem uma palavra. Sinto o chão gelado debaixo do meu corpo, no entanto isso não parece impedir uma subita vontade de fechar os olhos e dormir, a luz no tecto parece extinguir-se lentamente, mas as minhas pálpebras mantêm-se abertas, ouço o som abafado de uma porta a bater e em seguida... escuridão.