segunda-feira, 26 de novembro de 2007

1.3 - Irascível

Que irritação! Ando estranho ultimamente, tudo, por mais pequeno que seja, me provoca uma irritação tremenda, e essa propensão para a irascibilidade gratuita não me deixa contente comigo próprio. Deve ser do pouco que tenho descansado, de há uns meses para cá que acordo sempre exausto, não me recordo dos sonhos, mas sei que são desagradáveis. Para ajudar à festa, é extenuante o meu contexto profissional. Pessoas a queixarem-se constantemente, ainda que pouco ou nada façam, e os enormes prazos de resposta a qualquer acção que se queira tomar. Impressiona a forma desconcertada como tudo parece estar implementado e no entanto, as coisas aparecem feitas, a funcionar, ainda que seja mais tarde do que cedo. Para além disto, os media só falam dos corpos mutilados que têm sido encontrados. Adoram estas desgraças. É o que vende mais e o público devora cada novo artigo ou reportagem com uma intensidade como se a sua vida dependesse da informação lá contida. Acreditam mesmo que serão as próximas vítimas?! Provavelmente sim. Ou então é o seu subconsciente justiceiro, subjugado desde pequenino pela formatação socialmente aceitável, que anseia por se mostrar nem que seja em pequenas discussões entre amigos, tentando apresentar argumentos que sustentem as suas teorias ao mesmo tempo que refutam as teorias contraditórias. Por vezes até eu me quedo em leituras sobre esses casos. A própria polícia não parece saber bem o que procurar, ou o que julgar. Apesar das semelhanças entre os casos, também existem factos contraditórios que quase excluem por completo a hipótese de se tratar da obra de um único maníaco. Por vezes dou por mim a olhar em meu redor e a pensar “Não seremos todos maníacos?!”. Continuamos a esfalfar-nos horas seguidas por um ordenado que nunca parece chegar para as nossas necessidades. As nossas necessidades! Logo que satisfeitas dão origem a outras, sempre num patamar acima. Maslow e outros autores desenvolveram teorias sobre isso, mas em todas elas havia um cume, um tipo de necessidade que era o auge, após a qual não existe mais nenhuma que a exceda, o que existe é sempre necessidades recorrentes, que apesar de serem satisfeitas uma e outra vez, surgem novamente. O ridículo é essa busca incessante pela satisfação de necessidades nos consumir o tempo todo, não fazemos mais nada! Até quando dormimos estamos a cumprir com uma necessidade, a do descanso. Estamos a descansar e ao mesmo tempo a trabalhar, a trabalhar para o descanso, o que... só em si, cansa! O 1º cadáver encontrado, uma jovem, bonita por sinal, encontrava-se trespassada por um pau, a julgar pelo estado do seu corpo foi violentamente mutilada. Quando a polícia conseguiu identificá-la, já outros dois homicídios haviam ocorrido, em locais totalmente distantes e de formas díspares. Cá para mim estamos perante um, ou vários indivíduos que atingiram um ponto de ruptura nesse ciclo de cumprimento de necessidades. O pior de tudo é que mesmo estando consciente de tudo isto, consigo visualizar-me a enveredar por essa ruptura também. É algo inevitável. Como se de uma nova necessidade se tratasse. A fuga à banalidade, à repetição intemporal. A sociedade está chocada! Porquê?! É uma questão de equilíbrio mental. A sociedade perfeita não existe, julgo que já todos o sabemos. Se não existirem estes tratamentos de choque toda ela enlouquecerá. Assim são apenas pequenos fogos que cedo ou tarde serão apagados, mas que obtêm o seu principal propósito... lembram-nos de que o nosso mundo é inflamável. “Já viu isso?! Está tudo louco. Desatam assim a assassinar pessoas indiscriminadamente e ninguém faz nada. É sempre a mesma coisa!”, após a surpresa em ouvir esta voz cavernosa dirigir-se a mim, não pude deixar de pensar que era mais uma observação irritante e inteiramente desnecessária. E esta mania, absurda, de meter conversa com alguém totalmente desconhecido, apenas e só porque está a ler um artigo sobre a actualidade mais badalada. Não pude evitar retorquir “E você, tem feito algo para resolver estes casos?!” – fui obviamente indelicado, mas não totalmente despropositado – após o embaraço inicial, o homem de meia idade, com um bigode típico, sinais claros a indicar uma obesidade excessiva e o rosto rosado denunciando a dificuldade em exercer qualquer tipo de esforço físico, até mesmo o simples acto respiratório parecia ser uma tarefa extenuante na vida deste, hesitou até responder num murmúrio quase imperceptível “Se faço alguma coisa?! Que descaramento. Não sou eu que tenho de fazer alguma coisa... sinceramente...” no entanto, nem ele próprio parecia muito convicto da sua razão. Dei por mim de olhar fixo neste homem, a pensar “Mais um que se apercebeu do quão insignificante é a sua vida! Mais um que teme, do fundo do seu ser, que alguém o descubra para além dele e resolva tomar-lhe a vida. Disfarça melhor meu caro, pois até eu posso cair nessa tentação.”.

2 comentários:

Anónimo disse...

certas passagens que nos toca a todos... mas prefiro aquando os seus níveis de irritibilidade estão mais baixos e podemos continuar a sonhar ao entrar na imaginação...:P
me

Roxanne W. disse...

hum...novamente o desgaste da rotina, das regras, do dia dia comezinho que mesmo com as fundações pareçam carcomidas parece funcional...é neste momento em que a presão de ser o mesmo de sempre que ocorrem os crimes...o que nos separa uns dos outros no limbo?